Jangadas
Claudia Vecchi-Annunciato
Acordou naquela manhã de sábado agradecendo a tranquilidade esperada, marido e filhos, todos homens feitos, saíram para uma pescaria em família, onde tios e primos ririam a tarde inteira e trariam tudo ou nada como resultado da festa. Marina torcia pelo nada, mesmo que os peixes já viessem limpos, livres de escamas, tripas e cabeças; frita-los ou assá-los ao longo da semana não lhe parecia uma boa perspectiva. Espantou os pensamentos futuros com as mãos como se estivesse a espantar os pombos como fazia na infância. Caminhou pelo apartamento em silêncio, vez ou outra espantando os pombos de pensamentos do passado ou do futuro. Olhou seus livros, deliciosamente bagunçados em cima da escrivaninha ao lado de canetas e post-its coloridos. Trechos de músicas, versos e frases de suas cantoras e escritoras favoritas cobriam parte de um painel em constante transformação. Preparou chá de camomila, continuou a espantar os pombos, adicionou um pouquinho de mel, só para dar sabor e complementar o carinho que pretendia se presentear. Calor, dulçor e aroma perfeito…. Solidão perfeita… arrulhos silenciados.
Sentou um pouco esticou os artelhos dos pés de maneira a perceber todas as articulações; pequenos estalinhos agradáveis, fizeram as orelhas das gatas voltarem sua atenção para Marina, sem interesse o suficiente para abrir os olhos. Gostava de caminhar e se mover tão silenciosamente de forma não causar nenhuma reação as felinas; os movimentos auriculares eram o todo de interação que Marina queria naquele momento, gostava de imaginar que os bichanos, de sociabilidade seletiva, compreendiam o caminhar humano como algo desengonçado e pouco interessante. Sorriu e sorveu o último gole de chá, no retorno da cozinha, parou em frente ao quadro da sala, sobre o sofá – virado para a televisão. Quadro de parede vazia, não quadro de contemplação. Parou bem em frente, nele uma foto da praia retratava a areia, o mar e o contorno branco da espuma. Nem lembrava o motivo de ter escolhido ou se tinha sido sugestão da arquiteta. Era uma bonita imagem do céu em um azul clássico com algumas nuvens fofas brancas a dar contraste e profundidade. Mas faltava algo… faltava cheiro… faltava movimento aquele quadro perfeito, o mar imobilizado era como um cadáver. As orelhas das gatas paradas, nenhum arrulhar na mente.
A beleza da captura do momento tirava toda a graça do movimento das ondas, do barulho suave contínuo da arrebentação, da temperatura e do incômodo da areia, mas principalmente do cheiro de vida que só o mar possui. Ao fundo, quase imperceptível uma jangada, com sua vela colorida. Olhou fixamente, a jangada estava indo, a foto foi tirada no nascer do dia – pensou. Um mar de esperanças, de possibilidades e de inúmeras inseguranças. A beleza estática de repente se tornou uma promessa de incertezas das mulheres que ficam a esperar o marido e filhos a voltarem de uma jornada que pode não ter um final feliz. As pombas não voltaram, não pensou na ironia do marido e do filho irem pescar por puro prazer de passar horas sem falar ao lado de outros homens. O silêncio em seu cérebro foi tão pungente que as gatas abriram os olhos e bocejaram em sua direção com um pouco mais de atenção do que de costume.
E assim imóvel, olhando para a cena roubada do passado, fechou os olhos tentando lembrar da temperatura da água; nos sonhos a água nunca é fria, parece sempre perfeita -refletiu. Mas não existe perfeito, existe o contraste do mar, da areia, do movimento inconstante das ondas. Apertou os olhos com as palmas. Escuro e frio, o som suave da arrebentação… o cheiro rançoso da água parada, da maresia paralisada. Abriu os olhos rapidamente, quadro de beleza estagnada – pensou. Olhou os cantos do quadro e a moldura parecia úmida no canto inferior esquerdo. Esticou os dedos e tocou a lateral inferior, e antes do arrulhar se estabelecer em sua mente, levou os dedos até a boca como se pudesse sorver o salgado do mar; sentiu o gosto de poeira seca. Fechou os olhos novamente, mas dessa vez com brandura, respirou imaginando que seu inalar correspondiam ao suave ir e vir das ondas, o movimento respiratório igualou-se ao sanguíneo e podia sentir em suas artérias o ir e vir do sangue, entre o quadro e o mar, entre o coração e a jangada. Sentiu o respingar das ondas nas pernas, sentiu o salgado do mar nos lábios. Quando teve coragem de abrir os olhos estava na jangada e não mais na sala.
As pernas falsearam tudo que pode fazer foi sentar, ao tatear a madeira úmida sentiu a aspereza das cordas que possibilitavam a pequena embarcação adernar ou estabilizar, nesse momento de percepção ouviu vozes femininas, chamando-a pelo nome: “Marina! Marina!” Segure-se!” – Marina se segurou e a onda veio, lavando-a, mas a jangada voltou a posição. Com os cabelos revoltos sobre o rosto, ainda agarrada nas cordas, ouviu seu nome em meio a um mar de palmas. “Muito bem Marina, segurou a vida com suas mãos”.
Levantou-se, olhou o mar, notou as inúmeras jangadas coloridas com mulheres de todas as idades, cabelos igualmente revoltos, roupas molhadas e sorrisos soltos. Com gargalhadas em todos os tons, de sopranos e contraltos a onda gigante foi comemorada. E, como que contagiada pelo riso Marina gargalhou também, sentindo todas as tensões dos músculos serem liberadas, todas as preocupações diluídas na água salgada que lhe escorria pelo corpo, mas potente que qualquer forma de medicina que conheceu na vida.
Outro grito: “Preparem-se lá vem outra.” – Dessa vez Marina sabia o que esperar a onda era maior, mais forte, mas ela sabia que estava ali, que estava presente, que navegava naquele mar, independentemente da compreensão sobre o que era aquele mar. A onda se seguiu das gargalhadas libertadoras e roupas molhadas coloridas e brilhantes ao sol. Sal e riso, e esse movimento de se conhecer continuou por um tempo que não sabia calcular, até que começou a ouvir ao fundo o miar das gatas, suaves como um farol a direcionar o caminho de volta. Confusa, entre os miados distinguiu uma única voz audaciosa, a dizer-lhe: “Pode ir! Agora, você saberá como voltar.”
Fechou e abriu os olhos e novamente estava em frente ao quadro, sentiu as pontas dos dedos enrugados de quem permanece muito tempo dentro da água, as gatas a rodear as pernas e a ronronar. Os olhares com suas pupilas negras dilatadas, tinham como uma reverência, sentiu que as gatas lhe olhavam diferente. – Será que compreendem meu devaneio? – Seu pensamento foi interrompido pela mesma voz feminina que a conduziu de volta: “Não duvide de você!”.
Teve tempo de tirar a roupa molhada e o sal dos cabelos, antes dos filhos e o marido chegarem, quando adentraram o apartamento encontraram-na lendo no sofá; o quadro estava um pouco torto, com as jangadas mais visíveis, mas ninguém notou.
“Jangadas” foi ganhador do 3º lugar na AJEB – Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil.