Confira o texto “Parada de trem” de Claudia Vecchi-Annunciato

Parada de trem

Claudia Vecchi-Annunciato

O balanço do trem era sempre o mesmo, ritmado e enfadonho. Entretanto, Ângela o vivenciou de maneira diferente: ora era tranquilo e silencioso em meio às vozes e ruídos da correia e do cansaço do fim do dia, ora era angustiante e repleto de significados sinistros.

As portas fechadas do vagão, os cheiros de suor e dos hálitos, por vezes alcoólicos, remetiam-lhe ao desespero do confinamento, da impotência e do medo sem fim. Alguns dias, a angústia era tamanha que era necessário saltar e seguir o resto do caminho a pé, como se pudesse se libertar de sua própria mente ao se desvencilhar das pessoas à sua frente. E saltava do trem, libertando-se das portas que fechavam e ficavam para trás junto com toda angústia. Segurava o saco e focava em chegar cedo em casa. Cheirava suas vestes em busca do próprio cheiro e aguentava firme. Não desistir era uma forma de estar mais cedo em casa, de ver seus filhos, de cuidar das horas de vida que tinha longe do trabalho.

A vida de Ângela era feita de rotinas. Rotinas seguras que lhe traziam conforto. O único aconchego que reconheceu como verdadeiro na vida.

Saía cedo para trabalhar. Os filhos já iam sozinhos para a escola, que era a duas quadras de distância da casa simples que moravam. Alugada é claro, mas sua. Pouco espaço, poucos e simples móveis, mas era um teto e um lugar para o qual queria voltar. Pegava os filhos na casa de uma vizinha, uma mulher aposentada que alimentava e olhava as crianças das mulheres sem rede de apoio.

“Sem rede de apoio” é um jeito sutil de descrever a vida de Ângela. Não sabia da mãe, nunca conheceu o pai. E, o recordar do padrasto lhe interrompia o trajeto de volta e a fazia deixar as portas para trás e caminhar. Era o cheiro, sempre o cheiro.

Rotina e mais rotina. Via os filhos irem para a escola a duas quadras de casa, seguia na direção oposta, pegava o trem que balançava ritmado por duas estações. Paula entrava no mesmo vagão e falava sem parar. Já havia pensado em mudar de lugar no trem. Mas, mudar a rotina era algo que lutava para não fazer.

Paula era jovem, bem-humorada, falava e falava. Contava sobre todos os detalhes de seu dia. Era uma menina que gostava de Ângela por ser uma boa ouvinte, mal sabia ela que Ângela não era uma boa ouvinte. Ela simplesmente ouvia para não falar, concordava com a cabeça. Na maioria das vezes, não prestava atenção nas palavras, via a boca de Paula se mexer. Notava que cada dia Paula estava com uma cor de batom diferente, as unhas, por vezes lascadas, eram sempre coloridas.

Paula já tivera os cabelos loiros e bem escuros, muito lisos ou presos com desdém. As suas roupas eram baratas, mas combinadas com uma certa graça juvenil que Ângela não conseguia lembrar se um dia tinha possuído. Paula tinha 26 e Ângela, 28. Paula era solteira e vibrante. Ângela fora abandonada pelo companheiro, tinha os filhos para cuidar e só queria passar a vida sem ser percebida. Ser percebida era perigoso em seu mundo, parecia-lhe sinônimo de dor, vergonha e abandono.

Paula subia depois e descia antes. Então Ângela, nesses espaços entre o chegar e o partir de Paula, voltava para o seu silêncio interior no barulho do dia que começava. Até chegar ao seu local de destino.

A estação do trem não era longe da loja em que conseguira arrumar trabalho. Nos dias de sol, chegava com calor, nos de chuva, molhada e com frio. Vestia seu uniforme e ia para o fundo da loja organizar o estoque. Alinhava as caixas, colocava etiquetas, substituía os produtos que acabavam. Sentia o cheiro das caixas arrumadas, das fitas adesivas, das etiquetas. Conferia listas e ao meio-dia parava para almoçar. Almoçava sozinha. Às vezes olhava o céu. Terminava de almoçar, voltava para as caixas em suas prateleiras e etiquetas. Ia ao banheiro, lavava as mãos, olhava as unhas curtas e sem esmalte, trocava de roupa e saía para caminhar até chegar na estação.

Sentava-se, balançava ritmada, tentava não prestar atenção aos cheiros… Duas estações depois, Paula entrava, cheia de novidades das pessoas que conhecera. Das histórias das amigas de serviço dos crushes de todas. “Que palavra era aquela mesmo? Ah…”, pensava ela, e continuava a balançar a cabeça e a sorrir para as histórias da companheira de trajeto.

Às vezes, Paula falava tanto e tão rápido que Ângela se sentia tonta, mas ela preferia a tontura causada pela conversa inconsequente do que se atentar para os cheiros do fim da tarde. O suor dos trabalhadores misturado aos hálitos em meio às conversas indistintas faziam seu rosto franzir de repulsa. Balançar a cabeça afastava os pensamentos. Sorria para Paula e fazia alguma pergunta tola só para a menina retomar a conversa e Ângela poder respirar o ar que surgia da felicidade inconsequente das histórias que lhe eram contadas.

Paula se levantava num sobressalto e dizia “vou descer. Amanhã conto o resto”. Jogava um beijo no ar e saía saltitante levemente. Paula era leve. Deixou de estudar aos 17, não concluiu o ensino médio porque não quis. Era bonita, trabalhava em boutique, vendia bem e sabia ser agradável com as clientes. Tinha bom gosto e certa lábia, convencia qualquer uma que queria ficar bonita que “aquela blusa” ou “aquele vestido” fariam com que fosse a mulher mais linda do país.  Ângela pensou no dia que Paula lhe contou por que saíra da escola:

“Sou boa de cálculo e sei falar bem. Quero ser vendedora! Quem sabe um dia até a empresária. Nesse país, sorte era melhor que estudo.”

Paula era otimista. Teria sua própria boutique.  Ângela sorriu sem perceber, no fundo gostava da menina. Ela não teve a oportunidade de estudar, começou a trabalhar cedo para ajudar a avó. A avó morreu, continuou trabalhando, o tempo passou. Apaixonou-se, continuou trabalhando, teve seus dois filhos, foi abandonada, continuou trabalhando, e o tempo sempre passando. Tinha a rotina com tristeza, a rotina com trabalho e, às vezes, a rotina reconfortante.

Lembrava da mãe. Quando a mãe de Ângela soube o que lhe havia acontecido, perdeu a razão, ficou uma semana sem falar. Não deu consolo à filha, não a abraçou. Depois, fez as malas de Ângela e a mandou morar com a avó.

No fim daquele ano, Ângela recebeu uma carta onde a mãe dizia que não teria dinheiro para visitá-la no Natal. Nunca mais apareceu. Ângela pensava que a mãe havia morrido de culpa por deixar aquele homem entrar na vida delas e rasgar os sonhos que nem começavam a brotar em seu corpo de menina. O corpo que, mesmo sem curvas, atentou e corrompeu, o corpo que, sem malícia, foi profano. Outras vezes, Ângela pensava que a mãe fora fazer a justiça que a lei lhe negara. Que fora atrás daquele homem até as bordas do inferno e que o tinha empurrado dentro das labaredas profundas que ardiam para sempre. E, como a borda do inferno deveria estar muito longe, sua mãe ainda não voltou.

Sabia que seus pensamentos e justificativas eram infantis, talvez porque ela verdadeiramente tivesse morrido aos doze. Ou simplesmente perdido a própria alma. E, a casca do corpo seguiu a vida. A casca do corpo até achou que podia ser feliz, mas não foi. A casca que via nas vidas inocentes dos filhos o motivo para seguir com a rotina. Sorriu novamente lembrando dos rostinhos deles e respirou fundo, soltou os ombros e tentou relaxar e afastar os pensamentos.

De repente, o cheiro ficou insuportável e, em meio à repugnância, percebeu por sorte que chegara a hora de descer.


Publicado pela primeira vez em “Um Teto todo nosso: Narrativas curtas” e faz parte do “Desabrochar de uma miscelânea” na seção Mandacaru: As palavras surgem das percepções dos perfumes e de seus espinhos.

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