Descubra um mundo conquistado e defendido por mulheres em “Filhas de Gaia”, obra da escritora Linei Matz

Por Aniuska van Helden

Conversamos com a autora e nos encantamos com sua prosa forte e desafiadora, que nos conta como poderia ser um universo totalmente matriarcal, onde as lutas e as glórias femininas são a dinâmica desse novo mundo. “Filhas de Gaia” (Ed. Polifonia, selo Escritoras Brasileiras, 2025, no prelo) nos faz pensar e sonhar. Encante-se!

NEWSLETTERA — Fale um pouco sobre a temática do livro FILHAS DE GAIA: poder feminino. Que forças fizeram com que o livro fosse escrito? 

LINEI — Como Débora Porto aponta muito bem em seu curso de formação de escritoras, cada escritora/escritor tem suas obsessões, ou seja, temas que incomodam profundamente e precisam ser trabalhados pela escrita.

No caso do FILHAS DE GAIA, pensei em demonstrar, em uma espécie de “espelho”, no qual tudo aparece ao contrário, inclusive as palavras, uma outra forma de viver a vida, na qual a preponderância da visão feminina seria o contraponto a todo esse caos que temos vivido em um mundo masculino demais. Por isso, muitas vezes, competitivo demais e agressivo demais. Um mundo no qual declarar guerra para tomar as riquezas de um país vizinho é visto como algo “natural”, ao menos do ponto de vista do agressor; ou quando algum grupo tenta impor pontos de vista radicais a outras pessoas. 

Apesar de tantos avanços na ciência e na política, essa tentativa de impor agendas parece ter se naturalizado em diversas sociedades ocidentais. São coisas que me incomodam demais, e combatê-las é uma de minhas obsessões: quero deixar um lugar melhor para as próximas gerações, um mundo de mais liberdade e respeito. Por isso, escrevo. Escrevi o FILHAS DE GAIA para, como diz o lema da Escola de Escritoras, “mudar o mundo, palavra por palavra”.

NL — A sociedade de Gaia é majoritariamente feminina e organizada de forma matrilinear. Quais desafios e benefícios esse modelo trouxe para a narrativa?

LINEI — Em Gaia, as posições de poder são todas ocupadas por mulheres. Isso funcionaria no imaginário das personagens como a normalização de mães e mulheres, que se dedicam ao cuidado e à cooperação umas com as outras, como pessoas que organizam o dia a dia de uma comunidade e as questões importantes da vida, de forma amorosa e voltada ao bem comum. Não ao egoísmo e ao impulso de acumular poder e bens materiais, uma característica patriarcal e tipicamente masculina.

Há muitos homens que discordam dessa visão patriarcal da vida. Poderíamos chamá-los de progressistas ou feministas, porque estão alinhados à ideia de igualdade de direitos e deveres, não importando o sexo ou o gênero. No FILHAS DE GAIA, esses homens estão representados em personagens especialistas (Eliseu e Amadeus), artistas (Abel) e pescadores (Joaquim), trabalhos importantes naquela sociedade e que lhes trazem satisfação e um certo status.

O grande desafio que encontrei nessa forma de pensar uma sociedade foi a escassez de modelos femininos como figuras de autoridade, por exemplo, e qual seria a dinâmica social a partir de uma visão mais feminina do mundo.

NL — Como a língua local reflete as dinâmicas sociais e políticas desse mundo? Você pode dar exemplos de como os plurais femininos são usados?

LINEI — Procurei privilegiar as formas femininas da língua, especialmente nas concordâncias. Alguns exemplos: Pérspica e Abel são amigas há muito tempo; mãe e pai seriam “mães” e não “pais”; Joaquim e Talita são “irmãs” e não “irmãos”, entre outros. Há também o uso das palavras “membras” do conselho, “autômatas” (não consta no dicionário) e “sacerdote” para uma mulher (não “sacerdotisa”), já que o final “e” geralmente é comum ao gênero feminino ou masculino.

É unânime entre linguistas a ideia de que a língua reflete a realidade, e foi o que procurei demonstrar na forma adotada do português para refletir a dominância feminina naquela sociedade. Ao mesmo tempo, a língua cria realidades. Por isso, o uso predominante do feminino reforça no imaginário das personagens a ideia de que uma sociedade liderada por mulheres é natural.

NL — A relação entre ciência e sociedade é um tema forte no enredo. Como a criação cientificista moldou a identidade dos habitantes de Gaia?

LINEI — As filhas de Gaia na verdade não evoluíram naquele planeta: suas ancestrais vieram de um planeta original moribundo, em busca de uma vida melhor para si e para as futuras gerações. Mas o ambiente do planeta não era favorável à vida humana, por isso teve de ser adaptado primeiro pelas autômatas (máquinas com consciência humana) e depois por pessoas que tinham conhecimentos e alguma especialização fundamental para esse trabalho. Daí a valorização da ciência como meio de sobrevivência: todas as habitantes precisam se esforçar ao máximo para terminar o trabalho de “terrificação” do planeta, adaptando-o às necessidades humanas.

Mas há também artistas como Verônica, especialista na cítara; a pintora Tarsila; a escritora Óriens; a sacerdote e estudiosa de línguas antigas Equalis; o poeta Abel. Afinal, a arte expressa as emoções, a espiritualidade, a nossa própria conexão com o universo e conosco mesmas. Uma vida sem arte seria bem rasa.

Sobre conflito e temas sociais

NL — A chegada dos estrangeiros traz uma clara tensão entre duas formas de organização social: a matriarcal e a patriarcal. Como essa oposição é explorada na história?

LINEI — Começo pelo próprio comandante das estrangeiras, Miroslav Ksum. Seu sobrenome, se lido ao contrário, remete a um dos pouquíssimos homens mais poderosos do mundo capitalista de hoje. Miroslav representaria o homem branco europeu heterossexual que se considera superior aos demais por estar em um estágio tecnológico mais avançado; ele seria o símbolo da forma patriarcal de pensar o mundo, onde as mulheres e os outros homens são uma espécie de extensão de suas propriedades, por isso podem ser explorados.

Em Gaia, habitam pessoas de todos os tipos. O respeito e a visão de cada uma como alguém completo em si são duas das principais normas.

Miroslav sabe disso, mas dissimuladamente e sem autorização do Conselho de Sábias, ele vai tomando conta de um território ainda inabitado no Vale do Sul, instala cercas e começa a explorar a terra por meio de trabalho análogo à escravidão. Sem o menor remorso.

Essa seria a gota d’água para que o Conselho finalmente se recusasse a cooperar com o estrangeiro.

NL — A propriedade privada é proibida em Gaia, enquanto os estrangeiros a veem como essencial. Como essa diferença impacta o desenrolar da trama?

LINEI — A sociedade naquele planeta é utópica. A busca pela igualdade de direitos e deveres e a cooperação são o mote da vida cotidiana e do poder em Gaia. Tanto que as decisões mais importantes são tomadas no salão de pedra no centro do Vale do Norte, onde qualquer pessoa pode entrar e participar das reuniões do Conselho.

Não são aceitos títulos como “senhora” ou “senhor” por se tratar de símbolos de hierarquia, e em Gaia esses símbolos são rejeitados.

Possuir terras seria uma afronta a essa mentalidade, pois daria mais privilégios para quem as tivesse e produzisse nelas.

No planeta, as pessoas têm sua própria produção em estufas no fundo do terreno das casas; não há uma moeda em uso, portanto o acúmulo de riquezas fica impossibilitado. Como a regra principal é fazer tudo da melhor forma e pelo bem de todas, a cooperação substituiria qualquer sistema monetário e qualquer necessidade de se ter uma propriedade.

NL — O trabalho análogo à escravidão no Vale do Sul levanta questões sobre exploração e resistência. Como as matriarcas reagem a essa ameaça?

LINEI — O acúmulo de bens, especialmente daqueles que detêm os meios de produção, acontece principalmente pagando-se salários baixos a trabalhadores: a “divisão do bolo” nunca acontece, porque o dono dele só deixa migalhas para os demais como forma de mantê-los trabalhando, sempre pobres e dependentes de seus patrões.

A ideia em Gaia é que isso não aconteça e que todas tenham seus próprios meios de produzir alimentos, a liberdade de decidir no que vão trabalhar, com qual objetivo, desde que continuem de alguma forma cooperando com a adaptação do planeta.

A reação das matriarcas à ameaça do uso de trabalho análogo à escravidão é a mais diplomática possível, porém incisiva: ao saber do uso desse tipo de mão de obra pelos estrangeiros, o Conselho de Sábias decide pelo fim de qualquer tratado com eles e tenta trazer os subordinados de Miroslav para seu lado.

NL Há alguma inspiração histórica ou filosófica para o embate entre essas sociedades?

LINEI — Inúmeras: Christine de Pizan, em seu livro de 1404, A cidade das mulheres, fala sobre a existência de um reino totalmente dominado por elas, que nasceu a partir do momento em que todos os homens foram mortos em conflitos armados. Era um reino de mulheres guerreiras que defendiam seu território e seu modo de vida e eram temidas até pelos gregos antigos. Pizan alega que o tal reino, conhecido como o reino das Amazonas, durou e prosperou por mais de oitocentos anos.

Na Ásia existem sociedades matriarcais, nas quais a mulher que decide se casar, por exemplo, traz o marido para viver com a família dela. A Tróia antiga era uma sociedade matrilinear, na qual a sucessão ao trono era feita através da rainha a sua filha, apesar do machismo reinante na época.

Sobre personagens e narrativa

NL — As gêmeas ancestrais parecem ter um papel fundamental na fundação da sociedade de Gaia. Podemos esperar que elas apareçam na história de alguma forma, mesmo que indiretamente?

LINEI — Sim. Eram mulheres notáveis que carregavam uma mutação genética de sua mãe: a capacidade de se reproduzir sem a necessidade de um parceiro, a partenogênese.

Elas são citadas como ancestrais algumas vezes no decorrer do romance, porque deram início a uma nova raça, as “puro-sangue”, que se reproduzem assim e, por não precisarem de um parceiro, superaram o número de homens, o que se refletiu na divisão de poder: basicamente, são elas que tomam todas as decisões no Vale do Norte.

NL — Os homens que vivem na Floresta Der Rebellen são retratados como inconformados com o sistema matriarcal. Eles desempenham um papel importante na narrativa?

LINEI — Em princípio, desempenham um contraponto àquela sociedade feminina. São homens, em sua maioria, inconformados por não fazerem parte do sistema de decisões, logo, do sistema político da região. Sua maior demonstração de rebeldia era não estudar como esperado e ter uma vida frugal, pescando e se alimentando de peixes e das frutas e dos legumes do pomar de Carlota, companheira de um dos líderes.

Quando os estrangeiros entram em cena, os rebeldes se dividem: dois dos líderes, Jordão e Adão, apoiam as investidas de Miroslav; os outros ficam neutros.

NL — O comandante dos estrangeiros usa histórias para conquistar as habitantes de Gaia. Como a oralidade e a manipulação da narrativa influenciam os eventos?

LINEI — Somos seres que imaginam e contam histórias: adoramos ouvir uma trama bem-construída e envolvente. Isso está em nosso imaginário ancestral, especialmente porque a capacidade de ler e escrever, como forma de acesso universal ao conhecimento, é recente. Até pouco mais de cem anos atrás, a maioria das pessoas dependia da oralidade para obter conhecimentos e se entreter depois de um dia duro de trabalho.

Miroslav retoma essa tradição ao contar suas histórias, mas, especialmente a primeira (e única relatada no livro) que conta na casa das Equalis, tem um objetivo claro: demonstrar como as coisas funcionam em seu planeta original e como sua visão de mundo traduz a realidade que ele provavelmente vê como ideal (porque o favorece, claro). Na história que ele conta, há somente personagens masculinos, há violência, mas há também sabedoria, que vem dos personagens principais, todos homens. No mundo de Miroslav, é “natural” que somente os homens viajem, modifiquem o mundo e contem suas aventuras.

É a partir dessa história que as filhas de Gaia começam a perceber algo suspeito nas intenções do estrangeiro.

NL — A resistência das matriarcas contra os invasores é imediata ou ocorre de forma gradual?

LINEI — Elas se dividem um pouco em suas reações: algumas aceitam e apoiam os estrangeiros, enquanto outras questionam suas reais pretensões no planeta. O transcorrer da história as obrigará a tomar um lado.

Sobre influências e processo criativo

NL — Que inspirações literárias, mitológicas ou históricas influenciaram a criação desse universo?

LINEI — Além das Amazonas de Pizan, o Terra delas de Charlotte Perkins Dilman e o A jornada da heroína de Maureen Murdock, de onde tirei a máxima de Deusa: “Não sou tudo, mas sou suficiente”, foram as obras que mais me inspiraram.

No livro Quando Deus era mulher de Merlin Stone, descobri muito sobre mulheres na mitologia, sobre a Grande Deusa da antiguidade no Oriente próximo e, principalmente, a grande vantagem que os homens gozam por ter um deus masculino, como é o caso do Islã, do judaísmo e do catolicismo. Imaginei que poderíamos também conseguir essa vantagem se voltássemos a ter uma deusa regendo nosso universo espiritual e nosso imaginário.

NL — Como foi o processo de equilibrar ficção científica e crítica social dentro da trama?

LINEI Sempre vi a ficção científica como um exercício de imaginação, afinal, é necessário criar todo um mundo com suas regras e dinâmicas; também como forma de nos tirar do cotidiano para voltarmos a ele com outros olhos.

Minha intenção era proporcionar a experiência de se ler uma história toda no feminino, que exaltasse o feminino em um mundo regido por sábias mulheres, no qual o cuidar de si, dos outros e do planeta onde vivemos fosse a regra básica da vida. Sei que soa pretensioso, mas acredito conseguir, ao menos em parte, proporcionar essa experiência a quem ler o FILHAS DE GAIA.

NL — O que você espera que os leitores tirem dessa história?

LINEI Toda história tem um objetivo, uma agenda. O meu é fazer pensar, fazer questionar todo esse sistema de valores em que vivemos e mostrar que poderia ser diferente e melhor. Refletir, se emocionar com as personagens, identificar-se com algumas delas e, por que não, divertir-se também.


SOBRE A AUTORA

Linei Matz é professora de línguas, escritora, feminista e mãe, não necessariamente nessa ordem. Com publicação de contos e poesias nas coletâneas “Um Teto Todo Nosso” (volumes 2 e 3, pela Editora Polifonia, selo Escritoras Brasileiras), conto na revista “Contos de Samsara” e dois romances autopublicados no Kindle Amazon, hoje trabalha em seu quarto romance, sequência do “Filhas de Gaia”: “Gaia sob o mar — previsto para o segundo semestre de 2025.

Conheça um pouco mais do trabalho da autora: www.escritorasbrasileiras.com.br/linei-matz

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