A Princesa
“Finalmente depois de semanas de expectativa, hoje é dia 12 de outubro! Já tenho quase 13 anos, mas ainda ganho presentes. Esse ano, pedi um Astronauta, ou um lego de Nave Espacial! Sei que parece bobo pra uma menina grande. Mas já tem uns meses que eu decidi ser engenheira aeroespacial!! Passo dias em frente ao espelho, me imagino no uniforme branco, imponente, sério! Com o capacete redondo e transparente na frente, consigo até ver meu rosto compenetrado de exploradora espacial!
Só tiro 1O em matemática. Já sei fazer todas as contas, até do 9° ano! Juro! Quero ser igual Papai, engenheira. Mas de outro tipo, não quero construir prédios. Quero viajar pelo espaço, descobrir novas galáxias! Há tanto a viver!
Opa! Eles acordaram – dou mais uma olhadinha no espelho e penso que seria demais se eu ganhasse mesmo um uniforme!! Chego animada na sala, eles estão com o presente embrulhado nas mãos! Não consigo segurar minha empolgação! É uma caixa grande, deve ser uma nave e um astronauta, talvez venha com o uniforme mesmo!!!”
A Menina abre a caixa e lá dentro encontra um kit de maquiagem, com várias cores de batom, sombra, blush e bobagens do tipo. Com os olhos marejados, ela corre e abraça o Pai com força, que retribui e diz, amoroso:
– Feliz Dia das Crianças! Você sempre será a minha princesinha!
– Obrigada, Papai.
A Noiva
“Papai está muito orgulhoso e emocionado. Disse que dou a ela a maior alegria que um pai pode ter. Casar a filha com um homem de futuro! Marcelo também é engenheiro. Isso agrada Papai.
Me sinto em transe. Não sei bem como me arrumei e cheguei até aqui. E, também, me sinto… me sinto… sem palavras. Até comecei a beber bem cedo hoje. Bem, na verdade, passei a noite bebendo. Não conseguia dormir. Sempre tenho uma vodca escondida nas botas. Lá, Mamãe não vê. Tanta coisa ela não vê. Mas eu não dormia era de felicidade. Empolgação mesmo.
Peço mais Prosseco e o cerimonialista faz careta. Ele devia saber que as noivas são assim. Não são? Nervosas? Temos um buraco no peito, que parece que vai nos engolir?
Daqui a pouco, Papai vem me buscar. Rumo ao altar! Eu… me olho no espelho e me sinto enjoada.
Penso na minha orientadora, uau, ela quase surtou. Mas como eu iria? Mestrado nos Estados Unidos. Uma mulher sozinha. Seria perigoso. Claro! É óbvio que eu já não falava mais naquela bobagem de ser astronauta. O mestrado era em engenharia robótica.
Eu realmente amava. Amava muito.
Mas família é o que importa. Sim, isso é o certo. Eu estou totalmente …. realizada…
De novo o espelho. Parece que me encara. Não quero ver meus olhos. Mas o vestido é lindo. Uma joia. Papai fez questão de me dar o mais caro da loja. Ele me ama muito. Não gosto muito das rendas, pérolas, sempre achei cafona.
Mas isso é uma noiva! Linda, linda.
Não sei por que, me vem à memória as flores da casa antiga. Véus de Noiva, que ironia, elas pareciam tão livres e vivas.
Esse enjoo não passa. É normal do nervosismo. Frio na espinha. Imaginava que essa vertigem das noivas fosse parecida com borboletas. Mas não. É como um sobretudo preto pendurado na porta de entrada. O sobretudo não é meu. E moro sozinha. De quem é esse sobretudo? É esse tipo de frio na espinha que sinto agora. Acho que vou desmaiar.
– Até que a morte os separe, diz o Padre;
Penso no mestrado que nunca farei e já me sinto um pouco morta.
– Pode beijar a Noiva;
Não quero ser beijada, me sinto tão enojada, o sobretudo, a porta fechada, sozinha em casa. Quero ser um Véu de Noiva livre!”
A Noiva fecha os olhos, sorri e, trêmula, beija o noivo. Os convidados aplaudem. Os pais dos noivos emocionadíssimos, se abraçam. A Noiva perde o equilíbrio. O noivo a ampara. Todos saem felizes para a festa.
A Mãe
“Acordei exausta. Ou nem acordei. Será que eu dormi de verdade? Estou em casa.
O silêncio me oprime tanto quanto o choro incessante do bebê.
Minha respiração é ofegante. A qualquer instante recomeça. Olho pro lado, Benjamim dorme. Meus seios doem. Meu corpo todo dói. Essa palavra, dor, penetrou em mim e não me deixa. Junto com o silêncio. E as ausências. Onde estará meu corpo pra além de tanto vazio?
Papai disse que o neto é o filho que ele nunca teve. Homem! Mas ele anda muito ocupado. Pouco o vejo. Papai diz que, quando Benjamim tiver idade, irá realizar o sonho de levá-lo ao Maracanã.
Eu gostaria de ter ido.
Mas o que incomoda é minha cabeça, coça sem parar Não me lembro se lavei o cabelo essa semana. Sinto saudades do cheiro de xampu.
Há dias não vejo Marcelo. Ele chega cada dia mais tarde e eu finjo que durmo com o bebê no colo. Ele vai direto ao nosso quarto. Sinto que, se pudesse, trancaria a porta. Tudo bem. Eu durmo, ou não durmo, no quarto do bebê.
Meu pequeno algoz. Monstrinho insaciável, vontade de devorar essas bochechas. Saturno de Goya. Quem seria eu, Saturno ou o Filho?
Bobagem, eu adoro esse serzinho. Que me suga, me exaure, me morde, me chama, grita, esfacela. Queria um café. Não pode, o leite. Quase um ano. Amamentação em livre demanda. O bebê demanda o leite, meu leite. Por isso me demiti. Quando o cansaço ficou insuportável, Marcelo fez que me demitisse: Você tem que se cuidar, minha princesa!
Hahahahaha, ai ai, se cuidar…
Guardei a vodca embaixo da mala da maternidade. Perto de amamentar eu evito, claro. Mas agora o bebê dorme, então acho que não há mal.
Antes vou lavar meu cabelo, assim acordo…”
A Mãe se levanta e liga o chuveiro. Abre o frasco e sente o cheiro gostoso do xampu. No instante em que a água toca o chão, o filho chora.
A Mãe sente que vai cair. Se apoia na pia. Chora ela também por alguns segundos. Os gritos do bebê aumentam. Ele demanda sua mãe. Ela volta ao quarto do filho e o pega no colo. Sente um cheiro azedo.
Só então ela se olha no espelho e percebe que seus cabelos ainda estão secos.
A Sombra
“Acho que estou acordada há uns 5 dias. Nunca mais trabalhei. Marcelo ganha super bem. Que sorte! Uau! E o maior precisava de um irmão. Acho graça. O maior e o menor. Papai não gostou muito, disse que um casal seria melhor. Que eu devo logo encomendar um terceiro! Pra vir uma menina e ser minha companheira na casa, olha que sonho! Ah, a família!
Tive outro bebê. Esse menorzinho está com quase 4 meses. Ainda não consigo olhar muito bem no rosto dele. Quando ele chora, eu, sozinha, sinto uma urgência.
Esse não mama. E ele também não dorme. Nada. Aí, o outro acorda e chora também. Marcelo nunca em casa. Papai até hoje não levou Benjamim ao Maracanã.
Pego o menor no colo e vou até o quarto do outro. O maior.
Tenho uma garrafa em cada quarto. Deles. Eu não tenho mais um quarto. Nem um oitavo hahahahaha, acho que preciso de mais um galinho.
Faço o maior se acalmar. Sinto vontade de colocar a vodca no seu suco. Algo me impede. Mas, nem um pouquinho?
O desespero continua. As noites e os dias intermináveis. Sem tréguas. Caminho até varanda. Preciso respirar. Ouço de novo um choro e já não sei de quem. Será que é meu? Como num sonho, percebo que minhas pernas se movem sem consciência.
Estou sentada no muro. Penso em voar. Galáxias, estrelas e pequenas flores brancas ao vento! Abro meus braços.
Só então sinto um peso caindo nas pernas. Num átimo de segundo do mais profundo horror, consigo a tempo segurar seu corpo pequeno e me jogar de costas no chão. Bato a cabeça. Sinto meu cabelo molhado em sangue. O menor chora. Eu choro. Pela primeira vez, amei desesperadamente aquele bebê. Tão perto da morte quanto eu. Agora o outro volta a chorar.”
Ao longe, só se via uma sombra na varanda escura. A Sombra se vira e vê um reflexo no vidro da porta. Procura sem sucesso encontrar uma Mulher. Nem ao menos uma Mãe ela encontra. Tudo que vê, é uma massa disforme de duas vidas em dor.
A Sombra se levanta finalmente do chão. Caminha como uma aparição até o quarto. Devolve o bebê ao berço. Ele ainda chora. Todos choram. Ela caminha pela casa vazia, busca as garrafas de vodca. Recolhe-as numa pequena mala com alguns pertences. Fecha a porta de casa atrás de si.
Ninguém
“Não me lembro bem como cheguei aqui. Foram tantas culpas e punições. Instituições, remédios, médicos. Fugas. Foi tanta morte de tudo em mim. Um dia acordei nessa cidade. Muito confusa.
Lembro dos meninos, mas não sinto saudade deles. Nem do Marcelo. Também não penso mais em Papai. Não penso mais em quase nada.
Quando saí de casa a primeira vez, me sentia má. Feia. Estragada. Podre. Ingrata. Indigna. Depois, os remédios foram embotando as memórias, os sentimentos. Eles se juntaram à vodca numa combinação irresistível. E era bom. Até a culpa de cada recaída era embotada. Papai morreu de desgosto. Disseram.
Aos poucos foram desistindo de mim. E eu não os culpo. De jeito nenhum. Eu também desisti. Já tinha desistido há muitos anos. Quando, com os olhos ainda molhados, fui pro quarto experimentar minha primeira maquiagem. Ali eu comecei a acabar.
As vezes fico lúcida, como agora.
Eu tenho uma casa só minha. E é bem bonitinha. Gosto de enfeitá-la com objetos que recolho aqui e ali. Pendentes com garrafas vermelhas, verdes, transparente com recheio de tampinhas coloridas. Jogo acima dos fios, onde ninguém pode mexer
Aos poucos, demarquei meu espaço, minhas paredes invisíveis. Eu também fico invisível, sentada nos móveis, que são algumas caixas, um cobertor, coisas de viver Tive um fogãozinho azul, bem conservado. Me confortava pensar no seu calor Tinha vontade de abraçar aquele fogão.
Mas eles me roubaram, como quase tudo mais.
Ah eu tentei sim. Tentei sentir o que era certo. Mas só conseguia ser um espelho torto, refletindo errado o que em mim projetavam. Me alivia agora ser nada. Poder não amar quem eu não consigo.
Mas essa vida possível onde existo me escorre pelas mãos lentamente, continuamente.
É tão profundo, o nada, que só me resta o último ato de entrega. Aproveito minha cortante lucidez e uso a lâmina enferrujada. Abro lentamente a carne dos meus pulsos. Paz. Sinto o líquido viscoso da vida, do sangue, do meu eu, escorrendo pelas mãos. Penso na menstruação, em pequenas flores brancas, véus-de-noiva, respingadas de vermelho; penso no sangue em meu cabelo e no choro de meu filho. Meu filhinho tão pequeno.
Encaro sem medo os olhos de Saturno a devorar-me. Procuro o céu, através do teto invisível da minha casa, e começo a ver as estrelas onde havia nuvens espessas. Elas parecem brilhar cada vez mais próximas. Sinto que finalmente realizarei meu sonho de ser Astronauta.”
Flora morreu sentada naquela esquina da Rua Jardim Botânico, que foi sua casa por tanto tempo. Ninguém ali sabia seu nome ou de onde vinha. Algumas pessoas sentiam pena, outras medo, a maioria, apenas repulsa.
Naquela terça-feira fria de outono, Flora olhava para o céu e sorria. Braços abaixados, ninguém percebeu o sangue que escorria pelas suas mãos. Estava escuro. O céu nublado. Não havia lua nem estrela. Era uma noite triste. Ninguém reparou que ela não tinha cobertas ou casacos; nem mesmo o fogãozinho azul a lhe aquecer.
Era uma mulher porca, no meio da rua, unhas pretas, cabelos sujos, sem xampu.
Uma bruxa suja, desprezível, estraçalhada.