Numa certa manhã, Adélia acordou de sonhos intranquilos na pequena cama armada no porão da fazenda.
Ainda acorrentada ao cano que passava pelo sótão, levando o esgoto da casa, Adélia riu ao pensar que se via presa ao esgoto da sua própria família. O que diria o poderoso Dr. Antero se visse sua única e preciosa filha assim. Vil sedição.
Então era nisso que sua vida se transformara. Seus desejos, há muito incontroláveis, a haviam levado ao mais extremo esgotamento moral, sem nenhum resto de dignidade.
Sua entrega aos prazeres mais sórdidos, sujos, indizíveis; a busca pela satisfação imediata, inclemente, pulsante, urgente de todos os seus desejos a deixou assim. Numa quarta-feira de manhã, nua, suja, sangrando ainda do gozo dolorido da noite anterior, numa cama nojenta e presa ao esgoto da sua casa de infância.
Ela sabia que bastava um telefonema, o celular estava à mão. Mas fazia parte do ritual a expiação do dia seguinte. Do prazer absoluto e sem amarras à morte de tudo que a fazia sentir humana. Humanidade descartada, suja, sozinha, sem voz, num lugar escuro, irremediavelmente perdida entre o desejo e o medo.
Não, ela iria esperar, ainda havia muito tempo para retornar à cidade e receber o filho da escola.
Adélia aproveitaria aquela pequena morte. A cada gozo uma morte. Depois de cada morte, o alívio, a paz, que podia durar dias, talvez semanas, até que o desejo se tornava insuportável.
Adélia puta, vagabunda, pervertida, imoral, suja, louca, histérica, esquizofrênica, galinha, vadia, nojenta. Morta. Morta quando não havia mais desejo, a satisfação total.
Adélia sentia-se aliviada, era belo não ser.
Pensou em se deixar ficar, ser totalmente livre. Ela duvidava que algum ser humano já tivesse sido mais livre que ela, acorrentada, ali naquele exato momento.
Mas logo o telefone toca e a desperta. O filho precisa de um novo caderno de desenhos, dizia mensagem da Escola. Ela faz então a ligação.
Sua Tia já aguardava na Fazenda, desce e a solta sem perguntas.
A caminho da cidade Adélia ouve uma música do Toquinho e percebe que não vê a hora de abraçar o filho no retorno da escola. Os próximos dias seriam de calmaria.